Eles acionaram a campainha, a enorme porta de madeira se abriu e se fechou atrás deles. Os dois ficaram diante de uma íngreme e velha escada de madeira, cujos degraus rangiam em cada subida e pisada dos seus sapatos. O prédio era um velho sobrado naquela conhecida rua perto da Praça Mauá, no centro da cidade do Rio de Janeiro. Subiram os degraus ressabiados, mas cheios de esperança em encontrar a boa acolhida que desejavam. Ao chegarem ao topo da escada, depararam com a enorme sala à sua direita, ocupada com várias cadeiras, sofás e poltronas carcomidas pelo tempo. No final da sala, uma senhora gorda de cabelos grisalhos com traços de polaca e com forte maquiagem, parecia controlar tudo atrás de um balcão e ao lado de um telefone. Mas, ao passarem a vista em redor da sala, onde se encontravam alguns homens conversando com mulheres vestidas em pequenos trajes, veio a surpresa:
-Você viu o que eu vi? Perguntaram-se ao mesmo tempo os primos Zeca e Otávio.
Ambos balançaram a cabeça afirmativamente, se calaram por instantes, atônitos e desconfortados. O que eles viram naquele momento, fazendo parte daquele ambiente de tolerância, foi a D. Arlete.
Estávamos no início da década de sessenta e tanto D. Arlete, como os dois rapazes, moravam na mesma rua que ligava dois bairros na zona norte da cidade: a Abolição, menos desenvolvida, e Pilares, mais movimentado com o parque de diversões e a Igreja de São Benedito. D. Arlete era uma bela mulher de corpo esguio e bem torneado. Aparentava trinta e poucos anos e andava sempre bem vestida, com elegância e sobriedade. Seu rosto branco e afilado contrastava com seus olhos castanhos e cabelos longos e negros sempre bem penteados e arrumados. Era muito discreta perante seus vizinhos e de poucas amizades na comunidade. Muitas vezes era vista saindo de casa na parte da tarde e retornando de madrugada.
Enquanto Zeca só a conhecia de vista e nem sabia o seu nome, Otávio sabia muito bem quem era aquela mulher envolvida naquele momento descontraído entre homens falantes e mulheres com poucas peças de roupas transparentes.
- Você viu o que eu vi? A pergunta voltou à tona e provocou reações.
Zeca: - Estou passado e sem graça. Vamos embora?
Otávio: - Eu tive esta vontade, mas agora eu vou ficar. Ela me conhece e quero ver o que isso vai dar. E outra coisa: o Nilson vai gostar muito dessa história.
Zeca: - O que tem o Nilson com isso? Não entendi.
Otávio: - É que o Nilson namora a Dina, a filha dela. Como a Dina é amiga da Tânia, minha namorada, frequentemente estamos juntos em passeios, cinemas e lugares tranquilos para namorar.
Zeca: - Eu sei do seu namoro com a Tânia e o dele com a Dina nada sei. Qual o problema?
Otávio: - É que esta mulher é contra o namoro deles e já provocou vários escândalos ao encontrá-los juntos. Ela perde a compostura ao levar a menina de volta pra casa aos safanões e bradando xingamentos. E ainda me coloca no meio quando fala para a filha que não quer vê-la junto com vagabundos! Isso já aconteceu várias vezes.
Quando a senhora polaca chamou os rapazes para sentar e ficar à vontade, D. Arlete se virou e reconheceu Otávio. Os dois se entreolharam e o desconforto foi total.
- Vamos embora primo! Pra mim não vai dar! Implorou Zeca.
Otávio fitou com firmeza aquela mulher e ela, agora bem séria e constrangida, desviou o olhar, levantou-se e, numa breve carreira, evadiu-se pra dentro do longo e sombrio corredor em frente à escada, bem ao lado esquerdo da sala.
- Vamos embora primo, agora que ela saiu. Insistiu Zeca.
Otávio, cheio de determinação, estava pronto para enfrentá-la. No entanto, temia pela sua reação por conhecer sua agressividade nos momentos de irritação contra a Dina, o Nilson e talvez até contra ele.
Otávio: - Eu vou ficar e esperar ela voltar. Enquanto isso escolha uma dessas moças pra sua companhia.
Zeca: - Estou sem jeito por nunca ter enfrentado uma situação dessas, mas chegamos juntos e vamos embora juntos. E lhe peço para irmos embora agora.
Enquanto os dois rapazes tentavam decidir o que fazer, a senhora polaca sentenciou: - Vocês vão ficar aí parados olhando pra ontem? Isso aqui não é nenhuma plateia assistindo um ato de peça teatral. Aqui os atores são outros e se pratica outro tipo de ato. Sentam-se, escolham as moças e satisfaçam suas vontades.
Zeca corou de vez com a sua timidez, deu meia volta e desceu as escadas bradando para Otávio: - Fique por aí e resolva o que tem pra resolver. Vou esperá-lo naquele bar aqui em frente, pra voltarmos juntos pra casa. Abriu a porta e saiu.
- O seu amigos foi embora. E você, qual das moças lhe interessou? Voltou a pressionar a polaca.
Ele: - Eu quero aquela de cabelos negros de saiote amarelo que saiu da sala e ainda não voltou. Posso aguardá-la?
Ela: - É a Débora e é pra já. Ela está livre e vou chamá-la. A polaca saiu do seu canto, entrou pelo corredor e voltou afirmando: - Ela está lhe esperando no quarto número três, apesar de insistir comigo pra não recebê-lo. Mas aqui não podemos recusar cliente. É a norma da casa. Você terá o tempo de 40 minutos pra ficar com ela e o preço é de cinquenta cruzeiros, a ser pago adiantado aqui pra mim.
Otávio acertou o pagamento, entrou pelo corredor e bateu à porta do quarto que foi aberta por uma mulher de olhos fumegantes de raiva. Era a D. Arlete completamente entregue aos caprichos do rapaz. A porta se fechou e a chave foi passada. Era um quarto não muito grande com uma cama de solteiro envolvida em lençol aparentemente limpo, mesinha de cabeceira, uma cadeira, um cabide em pedestal e uma pequena pia ao lado de uma pequena janela de madeira fechada. Em cima da mesinha girava um ventilador que pouco amenizava o calor. O banheiro ficava na parte externa do corredor.
- Vamos acabar logo com isso. Tire a roupa e coloque neste cabide. Determinou a mulher com nervosismo e intranquilidade.
Ele: - Fique calma que não estou aqui para humilhá-la nem para prejudicá-la. Como posso lhe chamar?
Ela atônita e surpresa com a atitude dele. - Que lhe interessa isso? Aqui eu sou a Débora e pode me tratar assim. Lá na rua eu sou a Arlete, ou melhor, a D. Arlete. Como vê, sou duas pessoas diferentes.
Ele: - Pra mim você não é só a D. Arlete e a Débora, porque ainda falta outra pessoa: a Megera.
Ela: - Que história é essa? Você está me ofendendo!
Ele: - Quem me ofende é a senhora, quando me coloca no meio dos "vagabundos", ao encontrar a Dina com a gente. Mas apesar de você aqui ser a Débora, eu quero tratá-la com muito respeito, como a D. Arlete merece.
Mais uma vez ela se surpreendeu: - Se você insistiu tanto pra entrar aqui, mesmo não querendo me humilhar ou me prejudicar, o que você quer então?
Ele sentou-se à cadeira, ela na cama e ficaram frente-a-frente, olhos nos olhos. Otávio não podia deixar de admirar as formas daquela mulher. Ela cruzou as pernas deixando à mostra um lindo par de coxas sem estrias e ao se abaixar para descalçar as sandálias, deixou ver os seus belos seios rosados por trás de uma blusa sem sutiã.
Ele: - A minha insistência foi por não ver outra oportunidade como esta. E preciso saber o que tem atrás dessa megera. Porque a perseguição aos dois?
Ela sorriu e completou: - É que eu quero o melhor para a minha filha e não vejo nenhum futuro nela com o Nilson. Ele não trabalha e fica na rua arrumando confusões. É um vagabundo.
Ele: - Não é bem assim. Ele é um cara de família que tem seus defeitos como todo mundo. Mas ele gosta muito da Dina.
Ela: - Mas eu não gosto dele e dos seus modos. Não aprovo esse namoro. Não sei mais o que faço pra resolver isso.
Ele: - Deixa de persegui-los. Lembre-se que todo amor se fortalece nas dificuldades e restrições. Converse com eles, autorize o namoro e evite seus encontros às escondidas.
Ela: - E você? Porque namora a Tânia às escondidas? Por ser amiga da minha filha, também tenho cuidados com ela.
Ele: - Não preciso disso. A mãe dela sabe e é amiga da minha mãe. Ela aprova o nosso namoro. E sabe por quê?
Ela: - Nem imagino o que pensa uma mãe dessas.
Ele: - É que eu trabalho, estudo e ainda ajudo minha mãe. Sou um bom filho. E quando você, na pele da megera, me coloca no meio dos "vagabundos", eu fico frustrado por não poder reagir.
Ela: - E porque você não reage?
Ele: - Porque a D. Arlete poderia ser minha mãe e tenho que respeitá-la. Não sou nenhum vagabundo.
Ela: - Por ser a Tânia amiga da Dina, várias vezes pedi desculpas a ela pela minha grosseria e ela respondeu sentir muito por você. Por isso, agora, peço desculpas pela minha atitude. Não vai mais acontecer.
O tempo foi passando, a mulher levantou-se, deitou-se na cama e perguntou: - E agora? Como é que que ficamos? Lembre-se que aqui eu sou a Débora e preciso fazer o meu trabalho. Chega pra cá.
Otávio recusou e decidiu: - Pra mim você é a D. Arlete e tenho que tratá-la com respeito. Se um dia acontecer algo entre nós, eu quero conhecer melhor a D. Arlete e não a Débora. Se você não sabe, eu admiro a postura, a elegância e a sobriedade da D. Arlete quando passa por mim. A D. Arlete é uma mulher linda e cativante.
Ela: - Muito obrigado pela D. Arlete, Mas estou sentindo que aqui não vai acontecer nada. É isso?
Ele: - Sim, mas a polaca não precisa saber.
Ela: - Nem ela, nem o Nilson, nem a Dina, nem a Tânia e outros mais. Preciso da sua discrição e do seu segredo.
Ele: - Com certeza. Vou até alertar o meu primo que veio comigo e que está me esperando lá fora. Fique tranquila.
Ela: - Não pense você que tenho esta vida porque quero. Casei muito nova e tive as filhas muito cedo. A Corina quando nasceu eu tinha somente dezessete anos e a Dina veio um ano depois. Fiquei viúva aos 23 anos e sem recursos. A pensão do meu ex-marido não dava pra nada e precisei procurar trabalho para manter a casa. Por falta de experiência e formação, o único meio que encontrei para sustentar as minhas duas filhas foi este. Tanto a Dina, como a Corina, a mais velha, não sabem e nem podem desconfiar disso. Conto com você.
Ele: - Combinado. Mas pense no que lhe falei sobre o namoro da Dina. Se você permitir, com regras, vai ser menos estressante. Gostei muito desta nossa conversa. Muito proveitosa.
Otávio levantou-se pra sair e ela agradeceu beijando o seu rosto, não sem antes falar: - Desculpa-me mais uma vez pelo "vagabundo". Vou pensar em suas palavras.
Ele bem descontraído: - E eu não quero voltar a chamá-la de "megera". Daqui pra frente você será a minha querida D. Arlete.
A porta se abriu, Otávio saiu, desceu as escadas e foi se encontrar com o Zeca. Já passava da meia-noite e os dois foram procurar condução pra voltar. No caminho Zeca perguntou pelos detalhes. Otávio falou a verdade, mas este não acreditou.
- Não aconteceu nada? É isso mesmo? Perguntou Zeca admirado.
- Nada mesmo! Confirmou Otávio. - E outra coisa: Só nós dois sabemos do que vimos ok? Ninguém mais precisa saber. Ela me pediu segredo e conto com você.
- Ok primo. Concordou Zeca. - Mas que história esquisita hein!
- E você não viu o que eu não vi ok? Repetiram ao mesmo tempo os primos, perpetuando o segredo ao repetir na forma negativa, a expressão inicial desta história.
O tempo passou e tanto a Dina, como o Nilson, estranharam o novo comportamento da D. Arlete. Deixou de persegui-los, autorizou a Dina a namorar no portão nos finais de semana até as 23h00m e deixou de destratar o Nilson. Passou a cumprimentá-lo quando o encontrava antes de sair para o seu trabalho noturno. Foi uma transformação que eles não entenderam, ainda mais quando D. Arlete passou a conversar constantemente e amistosamente com o Otávio e a Tânia.
- O que será que aconteceu? Perguntavam-se os dois.
Mas isso eles não ficaram sabendo, porque o segredo nunca foi revelado.
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Não devemos julgar para não sermos julgados. Se não pudermos compreender os motivos alheios, a intolerância em nada agregará aos fatos, muito pelo contrário, permitirá que a pedra no telhado do vizinho retorne e quebre o nosso, que também é de vidro.
ResponderExcluir23/03/2016 22:56 - Eudalia Alves Martins
ResponderExcluirPoeta Olavo aplaudindo um belíssimo conto abraço...
08/07/16 20:29 - Adílio dos Santos Lá dVisconde
ResponderExcluirReal ou ficção foi um conto brilhante e por que não educativo?
29/08/16 08:31 - Lilian Vargas
ResponderExcluirUm texto para ler e reler dado a conveniência e sabedoria nas
letras.Muito bom poeta.Bom dia.Abraços
30/09/16 20:33 - Maria Araújo
ResponderExcluirOI MEU AMIGO, FIQUEI SURPRESA COM O FINAL...BRILHANTE SEU
CONTO...MUITAS COISAS PASSARAM PELA MINHA CABEÇA. ADOREI O DIALOGO,
MUITO INTERESSANTE. APLAUSOS!!! ABRAÇOS, MARIA ARAUJO
30/09/16 20:34 - Maria Araújo
ResponderExcluirOI AMIGO POETA, BRILHANTE SEU CONTO QUE INDICOU. LI AGORA MESMO.
ABRAÇOS, MARIA ARAUJO
De: "janetedaher"
ResponderExcluirEnviada: 2016/10/03 23:20:01
Li o conto.... achei interessante a sua defesa pelo seu amigo. Sua atitude também.... digo atitude diante de uma das personagens que ela representa na vida ( ou representava. ) Eram duas mulheres diferentes. A sua atitude permaneceu diante da que você conhecia fora daquela casa....
ali era uma profissional e elas tem todas, metaforicamente falando, o mesmo rosto, infelizmente....
25/11/16 01:45 - Deyse Felix
ResponderExcluirComo gosto de contos assim, que fazem os meus olhos não desgrudarem
das linhas até o consagrado THE END. >>>>> Uma noite tranquila, mas
nem tanto.
23/01/17 19:16 - Cristina Gaspar
ResponderExcluirUm bem articulado enredo, o desfecho me surpreendeu, gostei da
história, a construção do texto, pareceu-me um script de teatro,
parabéns, abraços fraternos, paz e luz em seus caminhos, obrigada
sempre.
Seu conto despertou a minha curiosidade e li de uma vez até o fim. Achei o enredo muito interessante e o final feliz. A atitude de Otávio foi ótima.
ResponderExcluir18/06/17 18:44 - Adílio dos Santos Lá dVisconde
ResponderExcluirPois é, Olavo, e você vem quebrar esse segredo?
04/04/19 20:33 - Antonio de Albuquerque
ResponderExcluirmuito bom enredo,gostei da história e construção do texto, como sempre
impecável, aplausos. Meu abraço poeta Olavo.
30/05/19 22:13 - António Souza
ResponderExcluirMuito legal a historinha da Megera. O que uma conversa não resolve,
não é verdade?! ainda que em situações bem estranhas... rsrsr - Valeu,
gostei muito. - Fez-me lembrar a história de um moleque conhecido meu
e a iniciação dele com as mulheres... aqui tinha uma quadra no centro
da cidade... rsrsr vou contar qualquer hora dessas... Abraços Mestre!
Parabéns pelo conto.